HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
O navio-prisão (2)
Uma das páginas negras da história santista
Além das histórias contadas por Marcelo Gatto, outro livro santista enfoca os acontecimentos do Raul Soares: escrito pela jornalista e professora Lídia Maria de Melo, conta a história de um dos presos políticos nesse navio: Iradil Santos Mello, seu pai. O jornal A Tribuna divulgou assim o lançamento do livro Raul Soares - Um navio tatuado em nós, em matéria publicada no dia 19 de novembro de 1995:
MEMÓRIA
'Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós'
Fernanda Piconez e Trigueiros
Da reportagem Jornal A Tribuna.
Por ironia, era um 1º de abril do ano de 1964. Os sindicatos foram invadidos por policiais das Forças Armadas, e como o operário Iradil Santos Mello havia passado a noite no Sindicato dos Operários Portuários e não chegara em casa pela manhã, sua esposa, Mercedes Gomes de Sá, foi procurá-lo. As filhas, Laura, de oito anos, e Lídia, de seis, não haviam ido à escola - que funcionava no sindicato - porque as aulas estavam suspensas.
Na volta, a mãe diz às filhas que o pai estava preso, e aí começa um drama vivido por muitas famílias em Santos e no País. A obrigação de estar calado, de denunciar amigos, de incriminar inocentes, de se afastar dos entes queridos, de fugir, de se esconder, de jogar tudo para o alto. Era o período da ditadura instituído pelo golpe militar, que deixou marcas profundas em muita gente.
Os sindicalistas, incluindo Iradil, foram presos no Palácio da Polícia, em Santos, de onde muito marginal foi tirado para ceder suas celas a eles, a jornalistas e a estudantes. Sindicatos sob intervenção, seus integrantes eram chamados para interrogatórios absurdos e as ameaças de serem mandados para o Raul Soares, um ex-navio de passageiros que estava ancorado próximo à Ilha Barnabé e serviria de presídio político, foram cumpridas.
Iradil ficou um mês e meio internado no Raul Soares. A imagem do navio e todas as conseqüências da prisão vivida por ele ficaram na cabeça de suas filhas ainda pequenas. Anos depois, uma delas, Lídia Maria de Melo, resolveu contar esta história. Corajosa, ela teve que passar por cima de barreiras emocionais e conter as lágrimas que insistiam em rolar.
O resultado poderá ser conferido na noite de autógrafos de Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós, que acontecerá na quarta-feira, às 20h30, no Consistório do Campus Santa Cecília, na Rua Osvaldo Cruz, 279.
O livro, um relato emocionado da história de sua família e do País, terá tiragem de dois mil exemplares, que serão distribuídos no Brasil e em Portugal. Enfim, vai-se saber mais um pouco deste período que nunca deveria ter existido, mas que jamais deve ser ignorado.
O navio, na época em que foi usado como prisão militar - (Foto publicada com a matéria)
Idéia vem desde a infância
Impossível não ficar eternamente marcada depois de tantos acontecimentos. Impossível também não ter a vida totalmente alterada depois de tudo. E assim, Lídia, que sempre gostou de literatura, começou a escrever. Perigosamente, porque na época imperava a ditadura, e a mãe, prevendo os perigos, insistia para que a filha tivesse muito, mas muito cuidado.
Isso foi em 1975, quando Lídia tinha 18 anos e fez a primeira tentativa de escrever sobre o assunto. O que saiu foi um conto no qual uma menina de seis anos observava o relacionamento de seus pais a partir de problemas políticos. Depois de pronta, ela mostrou sua obra a uma pessoa neutra, que não conhecia a história. O veredito? "O conto é irreal, porque é impossível que uma criança desta idade tenha esta compreensão da vida e possa ter estas impressões".
Só que não havia inverdade nenhuma. Quando tudo começou a acontecer Lídia tinha apenas seis anos, e aquelas eram realmente suas impressões. Mas, como os pais já estavam separados e algum tempo havia se passado, ela achou melhor enterrar a idéia. "Desse assunto não era tocado. Sempre falávamos sobre política mas não queria reabrir feridas".
Mas em 1985, quando terminava o curso de Jornalismo - já era formada em Letras -, chegava a hora de elaborar o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e Lídia pensava em fazer uma análise do livro Sangue de Coca-Cola, de Roberto Drummond, uma ficção baseada na ditadura mas que utiliza personagens reais.
Esta idéia surgiu porque em sua prateleira havia muitos livros sobre repressão, a chamada literatura de resistência, que era escrita por jornalistas e grandes nomes como Fernando Gabeira, Frei Betto, Fernando Pacheco Jordão, Roberto Drummond, entre outros. Os assuntos eram os que atingiam muita gente: anistia, abertura política, torturas, desalento, tristeza...
Em uma conversa com o orientador do trabalho, o jornalista Eron Brum, ele sugeriu que Lídia fizesse uma entrevista com seu pai e contasse a história. Pronto, era o que faltava para que viessem à tona aquele velho desejo, visto também como uma obrigação, e os bloqueios emocionais. "Eu sempre me emocionava muito quando falava disso, mas achava também que tinha uma coisa importante para contar".
Diante do xeque-mate, ela teve que conversar com o pai e qual não foi sua surpresa quando ele aceitou na hora o desafio de tocar nas feridas e falar sobre o que passou e sentiu com suas prisões e com a experiência do Raul Soares. "Aí eu concluí que os bloqueios eram meus e que não dava mais para adiar".
Gravador em punho, foram dois domingos inteiros, que resultaram em cinco fitas de pura história. Além disso, Lídia garimpou material em livros e jornais. Um mês e meio depois, o trabalho estava pronto. Apresentado em novembro de 1985, o TCC recebeu nota máxima da banca examinadora, formada pelos jornalistas Eron Brum, Lane Valiengo e José Reis Filho. Mas a publicação ainda iria esperar dez anos.
"Eu nunca procurei editora. O trabalho foi para a gaveta. Depois de um tempo, para complementar, fiz uma pesquisa de fotos e documentos, tem muitos editais que foram publicados na época".
Há três anos veio a proposta da Universidade Santa Cecília dos Bandeirantes - Campus Santa Cecília (Uniceb) para uma co-edição com a Editora Pioneira, de São Paulo. "Eu comecei a dar aulas na universidade e a diretora-superintendente do campus, Sílvia Ângela Teixeira Penteado, fez o convite". Pronto, o grito há tanto tempo entalado na garganta seria finalmente ouvido por muita gente. A missão estava cumprida.
Sindicalista Iradil Santos Mello
(Foto de Luigi Bongiovanni, publicada com a matéria)
Iradil, o sofrimento por ser sindicalista
O único crime cometido por Iradil Santos Mello foi ser conscientizado, politicado e sindicalista em uma época em que, segundo padrões estabelecidos por eles, isso era proibido. Este sergipano que gostava de violão, cavaquinho e às vezes dava uma de repentista não poderia imaginar que lutar por seus direitos e por um País melhor poderia lhe sair muito caro.
Trabalhador da Companhia Docas de Santos, era atuante nas assembléias do Sindicato dos Operários Portuários e achava que, se participasse da diretoria, poderia fazer mais pela categoria. Mas o que recebeu foi uma centena de interrogatórios, tratamento como se fosse marginal, hostilidade e, finalmente, duas prisões, uma no Palácio da Polícia e a outra no navio Raul Soares.
Diretores de seu sindicato foram presos por 200 policiais armados e Iradil era um deles. Depois de ter seus direitos aviltados, foi anistiado em 1979 mas nem de longe teve seus problemas resolvidos. Mesmo com direito a voltar ao trabalho, a Cia. Docas não quis aceitá-lo, e ele foi aposentado compulsoriamente.
Indignado, entrou na Justiça para reivindicar a volta ao emprego e ganhou a causa. De volta, e por cima, ficou nas Docas até 1991, quando, para evitar a demissão de cinco mil funcionários, a empresa elaborou a demissão incentivada. Para garantir o emprego de amigos, já que era aposentado, Iradil se afastou e, atualmente, reside em Guarujá.
A autora, Lídia Maria de Melo
(Foto de Irandy Ribas, publicada com a matéria)
Lídia, jornalista e professora
E depois de tudo pronto, como é que a Lídia se sente? "Eu tinha necessidade, como filha, jornalista, cidadã santista e brasileira, de relatar esses fatos, porque muita gente viveu isso em Santos e foi um problema para diversas famílias. Até hoje ninguém escreveu, ou porque não venceu os bloqueios emocionais ou porque não tinha preparo. Como tive condições, embora tenha sido um parto difícil, me vi na obrigação de escrever, principalmente porque a nova geração desconhece tudo o que ocorreu. A missão está cumprida".
Agora, ela espera que a obra seja bem utilizada pelos estudantes, pelos professores de História - "que têm a responsabilidade de formar" -, por jornalistas e por todas as pessoas que tenham interesse em saber mais sobre a história de sua Cidade e seu País. "Mas não espero que elas tenham sentimento de revolta ou vingança, e sim, de resgatar e reavivar nossa memória, para evitar que coisas assim voltem a acontecer".
O que a escritora quer é que seu filho se espalhe e a história seja difundida. "Agora, ele não é mais meu". Citando o escritor argentino Ernesto Sábato, Lídia afirma que "não há ditaduras más e outras benéficas. Todas elas são igualmente abomináveis".
E os planos? Nesta linha ela não tem intenção de escrever mais nada. Já cumpriu sua missão. Mas tem engatilhado, além de um romance (ficção), material para formar um livro de poesia. Também faz parte dos planos escrever um livro na área de saúde, mas mostrando o lado do paciente.
Quem é - Lídia Maria de Melo é santista e nasceu em 28 de setembro de 1957. Licenciada em Letras pela Faculdade Don Domênico, de Guarujá, pela turma de 1978, é também bacharel em Comunicação Social, pela Universidade Católica de Santos (turma de 1985). Ela começou a exercer o jornalismo em janeiro de 1986, no jornal Cidade de Santos. Desde 1988 trabalha em A Tribuna, onde exerce o cargo de subeditora da Editoria Local. Também colabora com reportagens para a revista Nova Escola, do Grupo Abril.
De 1976 a 1994 atuou no magistério como professora efetiva concursada do Estado de São Paulo, ministrando aulas de Português e Literatura Brasileira. Inconformada por natureza, pediu exoneração do cargo por estar decepcionada com a política educacional da rede pública. Hoje, leciona Português no curso de Jornalismo da Uniceb, mas já foi professora da Universidade Católica de Santos, dando aulas de Redação Jornalística na Faculdade de Comunicação Social.
Lídia, que também faz composições musicais, já publicou poemas em antologias editadas pela Shogun Arte Editora. É detentora de prêmios literários, como o Ruy Ribeiro Couto, da Academia Santista Juvenil de Letras, onde já ocupou a cadeira Luso Ventura.
Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós é seu primeiro livro solo, que já teve trechos publicados em A Tribuna, na editoria de Porto & Mar. Aliás, foi desta publicação que Lídia extraiu o título da obra, que inicialmente estava batizada de Para Não Ser Pego de Surpresa. Por esta matéria, ela recebeu uma homenagem da Câmara Municipal de Santos.
Capa do livro de Lídia Maria de Melo
(Reprodução publicada com a matéria)
Obra se divide em duas partes
A escritora dividiu o livro em duas partes. A primeira vai de 1963 a 1985, e a segunda é o que foi extraído das entrevistas com seu pai. O começo, que é a história contada sob o ponto de vista de Lídia, é narrado em primeira pessoa, e ela mostra como era a vida da família antes do terror instituído pelo golpe militar.
O pai tinha uma vida muito ativa, sendo candidato a vereador em Guarujá e um dos integrantes de uma das chapas que disputava a diretoria do Sindicato dos Operários dos Serviços Portuários de Santos, Guarujá, São Vicente e Cubatão.
Na época, Laura, a irmã mais velha, tinha sete anos; Lídia, seis, e a mãe, Mercedes Gomes de Sá, estava grávida de Lúcia. A infância também é muito lembrada, com a entrada para a escola e, em seguida, o golpe militar e a quebra do clima de tranqüilidade. A partir daí, o livro mostra as prisões do pai, as impressões de Lídia à visita ao Raul Soares, as dificuldades do pai para arranjar emprego, os processos, a postura da família e todos os problemas sofridos.
"Na escola, o dia 31 de março era comemorado como uma data importante, mas para nós era diferente. Tínhamos uma visão muito diferente daquilo". Mas Lídia não se limita à vida familiar. Ela insere informações políticas e sociais da Cidade e do País, como os festivais de 1967, as mudanças na legislação, os Atos Institucionais, o movimento estudantil, as torturas, entre outros.
Entrevistas - A segunda parte foi escrita baseada na entrevista com o pai e traça a história a partir do que ele contou. Daí surgem dados sobre sua entrada no sindicalismo, movimentos importantes dos trabalhadores em Santos e em outras cidades, os bastidores da prisão no Raul Soares, o que os presos faziam para passar o tempo, ocioso e repleto de medos e sobressaltos. Inclusive, as músicas que eles compunham ironizando a própria situação:
Somos presos do Raul Soares
detidos para investigação
e acusados de subversão,
mas o negócio não é esse não.
Nos sindicatos há intervenção,
nossos direitos rolaram no chão.
Temos Muniz, Cabeças e Cipriano
mancomunados com o capitão.
Mas nós aqui
já aprendemos essa lição
não cola não
não cola não.
Esse negócio de artigo
é papelão,
é papelão do capitão.
Agora só nos resta esperar
que esta comédia
venha se acabar.
Lídia também cita o caso do jornalista falecido Nélson Gatto, que chegou a escrever um livro sobre o navio, que foi destruído e nunca mais reeditado. Dá ainda detalhes dos processos sofridos pelo pai e da anistia, que nasceu em 1979.
Tudo isso é entremeado de muita poesia (escrita pela própria Lídia), letras de músicas, frases, fotos tiradas do álbum de família e documentos. A apresentação é de Eron Brum, para quem "Lídia revela o pai como um ser comum envolvido numa luta trágica: o sindicalista que ousa enfrentar as garras da ditadura. E ela o faz com poesia, para o desespero daqueles que estiveram do outro lado da história. Rara alquimia que faz ver o trágico com os olhos da ternura".
Do reencontro com o pai e da descoberta de muitas coisas nasceu este poema, intitulado O Sentimento, que Lídia dedicou a ele e à liberdade:
Hoje tenho motivos
para um sorriso vingado
Te encontrei sobrevivo, resgatado,
Ainda percebo vestígios
dos dribles dos últimos anos.
Mas tua cara anda boa
solicitando um brinde.
Como não bebo
ergo a mão
em sinal de prazer.
De total excitação.
De sangue sobrecarregado
de adrenalina...
Ergo a mão
e arrisco uma gargalhada.
Sabia que um dia
ainda riríamos de muitos deles.
Sabia!
Até parece piada.
Te arrebentaram...
Te matar não conseguiram.
SERVIÇO - Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós tem 122 páginas e capa criada pela Letra Nova Publicidade. A revisão e atualização ficaram a cargo de Lídia Maria de Melo. Fotos de Luigi Bongiovanni e Irandy Ribas.
Fonte:
http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0181.htm em 06/16/03 19:43:24
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